Pai e Filho (por Nelson Rodrigues)

O pai era alto funcionário da Casa da Moeda, já em vésperas de aposentadoria. Chamava-se Piragibe e enviuvara cedo, no primeiro ano de casado. O filho único, Ramiro, tinha-lhe verdadeira adoração. Dizia muito, entre risonho e comovido: “Papai é o maior!” Diga-se de passagem que o velho retribuía, e largamente, o afeto do rapaz.
Quando Ramiro começou a namorar Eneida, foi até interessante: ele não teve outro assunto. Repetiu, não sei quantas vezes:
— Papai é fogo!
Houve um momento em que ela fez o comentário:
— Eu acho bonito que você goste tanto do seu pai!
E o rapaz, de olho brilhante:
— Adoro!
Contou que a mãe morrera de parto. Desde então, o pai fizera os dois papéis: materno e paterno. Vivera para o filho e só para o filho. Era ele que mudava as fraldinhas do garoto, que dava banho, que punha talco. Depois, Ramiro fora crescendo, sempre à sombra daquele pai insuperável. Não tinha segredos para Seu Piragibe. Todos os dias os dois se reuniam. Ramiro fazia, então, um relatório de tudo o que fizera e de tudo o que pretendia fazer. E a palavra do velho era lei. Ramiro dizia:
— O que meu pai pede, eu faço. Não recuso nada a meu pai.
Eneida seria a terceira ou quarta namorada de sua vida. As três anteriores ele as despachara, a conselho do pai. Com o seu jeito grave, seu Piragibe decidira:
— Não serve.
E o rapaz:
— Chuto?
Pigarro:
— Depressinha.
Ramiro achava o pai infalível. E, mesmo que não fosse, ele se sentia incapaz de contrariá-lo. Foi franco com Eneida: “Eu não daria um desgosto a meu pai.” Impressionada, a garota arrisca:
— Escuta cá. Quem escolhe as suas namoradas? Você ou seu pai?
Foi taxativo:
— Eu. Mas é preciso que meu pai aprove. Se meu pai não aprovar, eu rifo. Ah, rifo! Meu pai não se engana. — E repetia: — Meu pai é fogo!
Ela, que já estava apaixonada, não quis dizer nada que pudesse feri-lo. Mas, em casa, com a mãe e com os irmãos, desabafou:
— Um chato, esse velho! E a senhora não imagina, mamãe. Ramiro não fala de nós. Só fala do pai. Enche!
Com uns vinte dias de namoro, vira-se para a menina:
— Amanhã, vou te apresentar a meu pai. Mas capricha, ouviu? Vai ser decisivo. Se ele gostar de ti, está salva a pátria.
Com surda irritação, pergunta:
— E se não gostar? Se não for com a minha cara?
O rapaz vacila, apavorado com a hipótese. Bate na madeira:
— Mas há de gostar, se Deus quiser! Mas olha: trata bem o meu pai! É um santo. E, além disso, escuta: é um velho de filme, ouviste? O velho mais bonito que já vi, em toda a minha vida. Isto é certo, minha filha, certíssimo!
No dia seguinte, Eneida foi para o famoso encontro, nervosíssima. Ao sair, suspira para a mãe: “Reza por mim, mamãe! Reza, porque esse velho é de arder!” A mãe veio trazê-la até o portão:
— Não te esqueças, minha filha. Infelizmente, a nora tem que ser uma puxa-saco!
A menina partiu. Encontraram-se na cidade. Quando apertou a mão de Seu Piragibe (um velho realmente bonito, com uma cabeleira à Carlos Gomes), tinha as entranhas geladas. Entraram na lanchonete, e Ramiro, atarantado, perguntava:
— Está boa aquela mesa, papai?
Ocuparam uma mesa do canto, junto de um espelho. Seu Piragibe, com um ar de estátua de si mesmo, fez o comentário grave:
— Bonitinha! Bonitinha!
Tomaram sorvetes com biscoitinhos. Durante a conversa, seu Piragibe fez-lhe toda a sorte de perguntas. Quis saber se era católica. Respondeu, na ânsia de agradá-lo: “Acredito em Deus. Mas não sou carola.” Enxugando os lábios com o guardanapo de papel, o velho pondera:
— O homem pode viver sem fé, mas a mulher, não.
Tudo o que o pai dissesse deslumbrava o filho. Seu Piragibe foi encantador. Por várias vezes, chamou-a de “minha filha”. Quando se despediram, ele disse, com uma cintilação no olhar:
— Desta vez meu filho teve bom gosto!
Ramiro saiu com o pai e Eneida voltou sozinha para casa. À noite, o namorado liga, delirante: “Gostou de ti! Aprova o casamento!” No dia seguinte, o rapaz aparece. O velho dissera: “Serve! Essa serve!” E Ramiro baixava a voz, iluminado:
— Não te disse? Meu pai é fogo!
Uma semana depois, já comparecia Seu Piragibe com o filho, para fazer o pedido. E combinou, com os pais da pequena, tudo: “O casamento pode ser daqui a quatro, cinco meses. Ramiro já ganha bem. De mais a mais, eu ajudo.” A família de Eneida concordava. O velho apanha a mão da garota:
— Trata do enxoval! Não vamos perder tempo!
A partir de então, três, quatro vezes por semana, aparecia, lá, o sogro. Conversava, longamente, com a pequena. Suspirava, nostálgico: “Você é a filha que eu não tive!” Ramiro vivia recomendando: “Agrada meu pai!” E ele próprio sugeriu: “Faz o seguinte: senta no colo do velho!” Ela obedeceu, com uma terna naturalidade. Até que, uma tarde, Ramiro liga para a pequena:
— Dá um pulo aqui em casa. Papai quer falar contigo. Vem agora.
A menina foi. O velho abre a porta do gabinete: “Entra, meu anjo. Ramiro, não. Quero falar contigo sozinha.” Ela obedece e o velho diz, segurando-a pelo braço: “Beija, me beija.” Surpresa, roça com os lábios a face do velho. E ele, com a respiração forte:
— Na boca! Quero na boca! Anda!
Eneida recua, mas o outro, desatinado, a agarra. Beija no pescoço e, depois, procura a boca. Esperneia, até que se desprende. Abre a porta, numa alucinação: “Ramiro! Ramiro!” O rapaz aparece.
Segura a pequena: “Que é? Que foi?” Eneida soluça:
— Quis me beijar na boca!
No gabinete, o velho arquejava. Ramiro a sacode:
— Para de chorar! Deixa de ser chata!
Quis arrastá-lo: “Vem. Vem.” E ele:
— Escuta, escuta. O que é que tem um beijo? É meu pai! Você vai beijar, sim! Vai deixar! É meu pai! Beija, papai! Beija, papai!
Ela esperneou: “Não! Não!” Ele a dominou por trás, imobilizando seus braços. Trincava os dentes: “Ou deixa ou não caso!” Seu Piragibe avançou, com os olhos em fogo. Ramiro repetia: “É como se fosse eu. Um momento só!” Eneida encheu a casa de gritos. O rapaz a larga:
— Então, vai! Cai fora! Eu não quero uma esposa que recusa meu pai! Meu pai está acima de mim! Rua!

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