O demônio (de Nelson Rodrigues)

O boy da empresa anunciou:
— Tem uma mocinha te procurando.
Eugênio estava examinando umas faturas. Levantou-se e foi ver quem era. Teve uma alegre surpresa:
— Norminha!
Era, sim, a futura cunhada, menina de 16 anos, jeitosa de corpo e de rosto. Deu-lhe um tapinha na face:
— Você por aqui? Mas o que é que há?
Conversaram, em pé, no corredor, junto ao bebedouro de água gelada. Nervosa, Norminha começa:
— Mara não sabe que eu vim aqui. Ninguém sabe. Vim aqui pra te dizer o seguinte: estão te fazendo de bobo! Compreendeu? De bobo!
E o rapaz:
— Quem está me fazendo de bobo?
Respondeu, sem desviar o olhar:
— Tua noiva. Sim, Mara. Minha irmã.
Segura a menina pelo braço:
— Que piada é essa? E me fazendo de bobo por quê?
Vacila, mas acaba tomando coragem:
— Olha, Eugênio. Eu vi Mara, está escutando? Eu vi Mara beijando o Alberto!
Recua, de olhos esbugalhados:
— O Alberto? Vem cá. Olha pra mim: isso é verdade?

O Alberto era casado com uma irmã de Norminha e Mara, a Olívia. No seu assombro, agarrou a menina pelos dois braços:
— Viu quando? Onde?
Disse tudo:
— Vi, compreendeu? Vi. No corredor lá de casa. Ontem.
Contou que os dois vinham em sentido contrário. Alberto saía do banheiro e Mara vinha passando. Alberto encostou a cunhada na parede e deu-lhe um beijo na boca. Repetia, trincando os dentes:
— Verdade, sim! Verdade! E nem me viram.
Geme:
— Mara fez isso? E com o canalha, o cachorro do Alberto?
Numa espécie de febre, Norminha vai dizendo:
— Uma sujeira! Você é bom, você não merece. E olha, Eugênio, eu vim contar pelo seguinte: Mara não pode ser tua mulher.
Ele anda de um lado para outro. Estaca:
— Escuta. Você repete isso na frente de Mara?
Ergueu o rosto, em desafio:
— Repito. Na frente de Mara, de Alberto, do papai, de mamãe, de todo o mundo.
Respira fundo:
— Vamos fazer o seguinte. Vamos lá.
E ela, firme:
— Vamos.

Apanhou o paletó, desceram. Embaixo, apanharam um táxi. De vez em quando, ele perguntava: “Quer dizer que é verdade? Você viu?” Respondia: “Verdade, claro. Ou você acha que, se não fosse verdade, eu ia falar contra a minha própria irmã?” Com lágrimas nos olhos, apanha a mão da cunhada:
— Ainda ontem, imagina. Ainda ontem. Sabe o que ela me disse? Que morreria comigo. Disse, veja você!
Repetiu, com o olhar duro:
— Mas beijou o Alberto. Eu vi.
O rapaz está chorando:
— Norminha, na tua família só você gosta de mim! Só você. E esse miserável do Alberto! Nunca fiz fé com a cara dele!
Chegam, finalmente. Eram seis, seis e pouco. Quando Mara o viu, correu para ele: “Meu bem!” Lançou-se nos seus braços, e com tanto ímpeto, que o rapaz ia perdendo o equilíbrio. Ao lado, sem dizer nada, Norminha olhava a cena, com um sorriso muito tênue. E, então, Eugênio, muito pálido, desprende-se:
— Um momento. Calma, calma. Escuta. Um momento, Mara!
Fez o bico de beijo:
— Beija, me beija!
E ele:
— Não. Primeiro, vamos conversar um assunto muito sério.
Atônita, olha ora o noivo, ora a irmã:
— Que cara é essa? Que foi que houve?
O rapaz:
— Olha. A Norminha me contou um negócio. Escuta, Mara. Um negócio que eu quero esclarecer. Norminha! Vem cá. Repete aquilo. Aquilo que você me contou. Repete.
Norminha encara, sem medo, a irmã:
— Eu vi você beijando, dando um beijo na boca do Alberto.
Mara gira, lentamente:
— Eu?
Cara a cara, Norminha repete:
— Você.
Pausa. Mara a olha como se a visse pela primeira vez. E, então, rebenta em soluços:
— Mentira! Mentira! — Como uma doida, corre para porta: — Papai! Mamãe!
O noivo, lívido, chamava: “Vem cá! Vem cá!”

Era uma casa de altos e baixos. Os velhos desceram, em pânico. Mara dava pulos no meio da sala, apontando a irmã:
— É o demônio! É o demônio!
O pai a agarra: “Minha filha! Fica quieta!” Debatia-se:
— Disse que me viu beijando o Alberto!
A outra trincava os dentes:
— Vi! Vi! Os dois, no corredor!
Não teve medo, nem do pai, nem da mãe, de ninguém. Desafiava a família: “Chama o Alberto! Manda chamar o Alberto! Eu digo na cara dele!” Atirado numa cadeira, dizia, monotonamente:
— Não há mais casamento! Não há mais nada!
O pai já ameaçara Norminha de pancada. Ela não teve medo: “Vi! Vi!” Quando apareceu o assombrado Alberto, repetiu tudo. Mara esganiçava-se: “Demônio! Demônio!” Por fim, agarrou-se ao noivo: “Você acredita? Responde? Acredita nesse demônio?” Respondeu, simplesmente: “Acredito!” Recuou:
— Então adeus!
Ele partiu. Então o velho arranca o cinto. Avança para Norminha: “Vai apanhar nas pernas!” Apanhou sem um ai. Mara foi para o quarto, trancou-se lá. Sozinha, apanha um lápis e vai escrevendo na parede: “Querido, acredita em mim. Uma morta não mente e eu morri. É mentira de Norminha. Eu não beijei ninguém. Norminha é o demônio. Te amo, te amo e te amo. Mara.” Matou-se ao amanhecer.

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