A Garrafa - de Nelson Rodrigues

De manhã, assim que chegou, correu ao contador:
— Seu Meireles, bom dia.
O outro rosna:
— Bom dia.
Carlinhos olha para os lados e baixa a voz:
— Seu Meireles, o senhor podia...
O velho interrompe: “Não ouvi.” Desnorteado, recomeça:
— O senhor podia me arranjar um vale, seu Meireles? Um vale? De duzentos reais?
Normalmente, aquele chefe, ou subchefe, teria dado. Embora triste, caladão, era humano. Mas tinha uma vida matrimonial muito atribulada. Naquela manhã, brigara em casa com a mulher. Esta berrara: “Sou esposa, mas não sou escrava.” Tudo porque ele reclamara contra um vestido colante e de um escandaloso decote. Era ciumento, ciumentíssimo. Ainda abalado pelo incidente conjugal, foi implacável:
— Não.
Quis teimar: “Mas escuta, seu Meireles...” Então, o velho perdeu a paciência: “Ó, rapaz! Você está pensando que isso aqui é casa da mãe Joana? Vale é uma concessão, um favor, que a casa pode não fazer.” Carlinhos, humilhadíssimo, retirou-se, derrotado. Pouco depois, cochichava com os colegas:
— Essa besta! O cara se casa com uma mulher muito mais moça pra isso! Aposto minha cabeça que brigou com a mulher. Brigou e eu pago o pato. Gozado!
Alguém diz: “Tenho pena do velho!” Carlinhos atalha, furioso:
— Pena por quê, ora que graça! Bem feito! Imagina que eu batalhei uma garota, um estouro, e estou com cinco reais no bolso! Fiquei de pegar a garota de táxi. E agora?
A ARMA
Fez uma tentativa junto aos companheiros. Andou de mesa em mesa, pedindo dinheiro emprestado. Mas a resposta era a mesma: “Estou duro.” Outros diziam: “Se tivesse cem reais, eu me casava.” Carlinhos acabou xingando:
— Vocês são uns pães-duros! Uns unhas de fome! A garota está me esperando! Preciso, pelo menos, de duzentos a duzentos e cinquenta reais!
Quase na hora do almoço, eis o que tinha arrancado dos colegas: vinte reais! Reconhecia, amargamente: “Isso não dá nem pra taioba. E a garota vale muito mais! Ah, se vale!” Novamente, odiou o contador:
— Um velho, que não se aguenta mais em pé, asmático ainda por cima, e tem o cinismo de casar com uma jovem! E como será a mulher desse cara?
Já desesperava, quando alguém sopra a sugestão: “E o teu revólver?” Vira-se, iluminado: “É mesmo! Boa ideia!” De fato, estava vendendo o seu revólver. Já oferecera a todos os companheiros, um por um. Mas queria três mil reais. Os outros resistiam: “É muito.” Mais animado, corre novamente para o contador:
— Seu Meireles, com licença. Eu tenho um revólver. Novo. Quer ver? Eu mostro ao senhor.
O outro vacila:
— Revólver?
Insiste:
— Pois é. Bacana, seu Meireles. Vou buscar.
Já saía, quando o velho chama: “Pra que revólver? Eu não quero matar ninguém.” Dizia isso com um humor macabro. Carlinhos volta:
— Não se trata de matar. Mas o senhor mora longe. Olha, seu Meireles. Hoje em dia, ninguém está livre de um assalto. Um momento. Eu volto já.
Sai e, pouco depois, está de volta, com o revólver. Desembrulha a arma:
— Tenha a bondade. Pode examinar.
Com a sua tristeza de marido velho de mulher nova, seu Meireles apanha o revólver. Por um momento, silencioso, um certo ar de sonho, passa a mão na arma, como se a acariciasse. Carlinhos tenta conquistá-lo:
— Pro senhor, eu deixo por dois mil reais. Novinho, seu Meireles. Vale muito mais.
O velho hesita ainda. Por fim, decide-se: enfia a arma na gaveta e apanha no bolso a carteira. Fascinado, Carlinhos acompanha os seus movimentos. Seu Meireles separa o dinheiro. Paga, ao mesmo tempo que, com um meio riso lívido, arrisca a graça triste:
— Se eu matar alguém com esse troço, não se esqueça: você será o culpado!
O rapaz embolsa grana:
— O senhor é uma mãe, seu Meireles!
O AMOR
O engraçado é que, ao receber o dinheiro, Carlinhos tivera uma intuição perfeita: “Compra o revólver por causa da mulher! Neste momento, está pensando na mulher!” E se, com aquela arma, seu Meireles a matasse? Com o egoísmo brutal dos seus vinte e poucos anos, desembaraçou-se de todos os escrúpulos com uma praga só: “Azar!” Marcara encontro com a sua nova conquista às três horas. Ia buscá-la em casa. Para si mesmo, fazia espanto: “Como é que uma garota dessas pode morar tão longe?” Conhecera-a, dois dias atrás, numa fila de ônibus. Sempre tivera horror das conquistas trabalhosas e a mulher o deslumbrara, justamente, pela facilidade total. Desde o primeiro momento, olhara e sorrira como quem se oferece. Carlinhos arrisca uma palavra e nasce o diálogo. No fim de 15 minutos, ela suspira:
— Sou casada, mas meu marido é um cavalo!
Surpreso, murmura: “Quer dizer que...” E ela, sem excitação, mas incisiva:
— Pra mim, qualquer homem merece mais do que o meu marido.
Carlinhos, de olho vermelho, conclui: “Está no papo!” A verdade é que não encontrou nem uma resistência convencional. Em dado momento, ele pergunta: “Qual é teu nome?” Responde com outra pergunta:
— O que é que interessa? Eu ou meu nome?
No dia seguinte, novo encontro e combinaram tudo. A anônima fora a primeira a dizer: “Mulher casada não namora.” E teve um riso áspero, que o desconcertou. Pois seja. Agora, com o dinheiro de seu Meireles no bolso, foi de táxi até a casa dela. No caminho ia pensando na mulher do velho. Ninguém no escritório a vira jamais. Sabia-se, apenas, que era muito mais nova que o marido. Este a sepultava em casa. Lá viviam como num túmulo, e com a agravante: túmulo tão secreto que nem telefone tinha. Carlinhos encontra a garota no lugar marcado. Voltam para um apartamento na cidade. Ela avisa, já em cócegas:
— Tu não me beija no pescoço que eu grito! Faço um escândalo! Não posso ser beijada no pescoço!
DESFECHO
No dia seguinte, Carlinhos entra no escritório numa euforia tremenda. Chama os companheiros. Fez parar, até, o seu Meireles, que ia passando, cada vez mais triste e cada vez mais lúgubre. Pede:
— Chega aqui, seu Meireles, que vale a pena!
No meio de gargalhadas obscenas (o único sério era o contador), descreve a aventura da véspera. Depois dos primeiros combates, no apartamento, a pequena pusera-se a gritar: “Me chama de garrafa de Coca-Cola! Me chama de garrafa!” E soluçava, no seu desvario:
— Paizinho! Me chama de garrafa!
Todos riram, menos seu Meireles. O contador afasta-se um momento e, pouco depois, volta. Disse para Carlinhos:
— A única mulher que gosta de ser chamada de garrafa de Coca-Cola é a minha!
Há um silêncio. O velho puxa o revólver e vara de balas o peito do rapaz.

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