Ciúme doentio (crônica) - coluna do José Lino

Na véspera do casamento, encontrou-se com o Aguiar, seu amigo de infância e companheiro de farras memoráveis. Sentam-se num bar e começam a beber. No fim do terceiro chope, o Chagas envereda pelo caminho das confidências. Finca os dois cotovelos na mesa e começa:
— Tu sabes como é a Nancy, não sabe?
Sabia. O Chagas continua:
- Minha noiva é o anjo dos anjos, a flor das flores.Tem, porém, um defeito: ciumenta que Deus me livre! E eu já sei que vou cortar um dobrado!
Aguiar pousa o copo na mesa. Lambe a espuma do próprio lábio e baixa a voz:
— Queres um conselho? Faz como eu. Quando eu me casei, minha mulher tinha ciúmes até de poste, percebeste? Então, não conversei. Sempre que via uma mulherona, cutucava minha mulher: “Aquela, ali, é minha amante!". Minha mulher ria, achava graça. Hoje, nem liga e acha que eu sou o único marido sério do mundo!
Chagas coça a cabeça:
— Não sei se com Nancy essa tática daria certo!
O outro protesta:
— Daria, sim, como não? Experimenta! Não custa experimentar!
DOENÇA
Vinte e quatro horas antes do casamento, o Chagas tinha razões e bem fortes, para estar preocupado. Nancy era, sem sombra de dúvida, um caso típico de ciúmes doentios. De saída, proibira o pálido, o branquíssimo Chagas de ir à praia. O pobre-diabo argumentava: "Mas eu preciso me bronzear. Olha só como eu estou branco, espia!". E, de fato, sua brancura lembrava a carne do peixe. Ela, porém, irredutível, impunha: "Não, senhor. Isso é conversa. Pra cima de mim, não!". O fato é que, na sua covardia de namorado, Chagas renunciara ao banho de mar. Nas festas, ele não podia dançar com ninguém. Nancy chegava ao cúmulo de proibir que o noivo dançasse com a própria irmã. Chagas abria os braços: "Mas isso já é doença!". Fosse como fosse, submetia-se. Ainda na véspera, tivera uma cena pavorosa com a noiva. Eis como ocorreu um incidente na maior e comovente boa-fé do mundo. Chagas dissera, para Célia, a irmã caçula de Nancy, um galanteio alegre e inocente: "Você, hoje, está uma graça!". Muito bem. Nancy amarrou um tromba medonha. Desolado, ele pergunta: "Mas que é que há? Que foi que eu fiz?". Nancy trinca os dentes:
—Você não respeita nem cunhada!
Estavam aborrecidos, imaginem! Aborrecidos na véspera do casamento! Bebendo o oitavo chope, com o Aguiar, Chagas bufa: "Desconfio que minha lua-de-mel foi-se por água abaixo!"' O amigo insiste, piscando o olho:
— Aplica minha tática, que é certeira! As mulheres são burras! Não enxergam um palmo adiante do nariz.
O CÍNICO 
Chagas sempre fora um admirador profundo e enternecido do cinismo do Aguiar. O amigo não mentia, nem exagerava. Espertíssimo, Aguiar passara a contra-atacar os ciúmes da esposa com uma arma inesperada e terrível: a pura e simples verdade. Ao voltar de suas infidelidades, dizia, em casa: 'Acabei de te trair com uma mulher daquelas!" Ou,então, em plena rua, indicava as suas conquistas: "Olha lá, uma das minhas garotas!" Como acreditar na verdade? Num instante, a mulher curou-se das ciumadas. E, mesmo os sogros, as cunhadas, achavam graça, riam: "Esse Aguiar é uma figura!" Cada vez mais devasso, mais corrupto, ele firmara uma reputação quase internacional de constância,de seriedade, de hábitos ilibados. E, agora, no bar, semi bêbado, cutucava o amigo que ia casar no dia seguinte: 
— Diz sempre a verdade! Ninguém acredita na verdade! 
CASAMENTO 
No dia seguinte, o Chagas, comovido, apavorado, passa peIas duas cerimônias: civil e religiosa. Patético é que a noiva continuava de cara amarradíssima. Já no civil, ele teve a praga interior: Bonito!" No religioso, continuou o mal-estar. Em casa da noiva, pouco antes de partir o casal, Chagas pensava: "Minha primeira noite está liquidada!". Houve um momento em que sopra para a noiva:"Faz uma cara melhor, meu anjo!". Ela o fulminou com um "Não aborrece!". Chagas calou-se, com medo de chamar a atenção. E, sem querer, pensou no Aguiar que, apesar do cinismo, ou por isso mesmo, tinha um cartaz tremendo em casa. Finalmente, os noivos partiram para a lua-de-mel. No automóvel que os levou, ele tenta segurar a mão de Nancy. A pequena foi seca: "Fica quieto!". E ele, abafando a voz: "Sou teu marido!". Ao que a garota replicou, também em voz baixa:"Pode ser meu marido, mas é um sem vergonha muito grande!". Foram até o hotel, num silêncio feroz. Chegando, Chagas experimenta a decepção mais amarga. Ouvira falar na fabulosa "camisola do dia", que Nancy mandara fazer numa renda fabulosíssima. Pois bem. Quando a viu pronta para dormir, recebeu um tal impacto, que gaguejou: "Mas é essa a tal camisola?" Ela o desiludiu: 
— Não, senhor! Esta é uma camisola velha e mambembe, ouviu? A outra, a bacana, eu guardei, está guardada! Caiu na asneira de perguntar: "Porquê?" Nancy o esmagou: — Porque você não merece uma camisola que custou mil e quinhentos. E vê se não me amola mais, sim? Boa noite!
DESESPERADO
Passou a noite, em claro, na poltrona. Interiormente, rosnava: "Só a bofetão! Só a murro!". De manhã, quando a garota despertou, ele vocifera: "Sabe que, contando, ninguém acredita? Isso não tem cabimento!" Num roupão rosa, por cima da camisola ordinária, Nancy revida: — Eu mandei você fazer o que fez? Não suporto o homem que dá em cima de tudo quanto é mulher! Gemeu: — Mas, criatura! Eu não dei em cima de ninguém! Eu não fiz nada, ora que droga! Diga o que foi que eu fiz? Antes de bater com a porta do banheiro, ela o fulmina, outra vez: — Ainda por cima, cínico! 
SOLUÇÃO 
Aconteceu o seguinte: no seu despeito, na sua frustração nupcial, Chagas perde a paciência e resolve pagar na mesma moeda. Uma coincidência novelesca veio ampliar e dramatizar a crise. Ao sair do quarto, com a esposa, cruza, no corredor, com uma ex-namorada, aliás sapequíssima, a Dorinha. Chagas lembra-se do Aguiar, da cara dura do Aguiar. Cutuca: "Viste aquela que passou? Aquela loura? Foi minha namorada e piscou o olho pra mim!". Nancy não se deu por achada. Limitou-se ao comentário sardônico: "Ótimo!" Mas continuou intratável até o fim do dia. Ele, ressentido, não deixou a mulher em paz. Ria, cínico: "Dorinha não tira os olhos de mim! Está flertando comigo, escandalosamente!" Era a pura e simples verdade. Ou por uma nostalgia sincera ou por uma pirraça de mulher, a loira aceitava ou provocava o flerte. De noite, quando se recolhe com a mulher, Chagas tenta reconquistá-la; suplica: "Por tudo que há de mais sagrado, vamos acabar com isso! Eu só gosto de ti e mais ninguém!”. Novamente, ele perde a cabeça:
- Você, minha esposa, me escorraça, me chuta, não é? Muito bem. Eu nomeio a Dorinha tua substituta! Não sou palhaço de ninguém!
DÚVIDA
Meia hora depois, Chagas estava com a Dorinha, no bar. Desabafou: “Minha mulher precisa de uma lição. Quero que tu me ajudes!” Dorinha diz que sim e pergunta: “Mas eu posso tirar minhas casquinhas, de vez em quando, não posso?” Por cima da mesa, pôs a mão no braço do rapaz: “Eu sou a mesma, eu não mudei!” A partir de então, ele andava com a loira oxigenada de baixo para cima, de cima para baixo, numa ostentação, num acinte, que era um escândalo. Uma vez por outra, dava, sem prazer, um apiedado beijo na garota. Voltava para o quarto, alta madrugada; acordava a mulher: “Estive até agora com a Dorinha e...”. Terminava, esfregando as mãos: “Arranjaste uma substituta formidáve!”. Até que chega o décimo quinto dia do regresso. De malas prontas, esperam o carro, na frente do hotel. Nisso, passa, ao longe, Dorinha. Chagas tripudia sobre a esposa, ainda uma vez:
- Sabes que eu lucrei com a tua substituição?
Nancy tem um meio riso. Passa, nesse momento, um rapaz que a cumprimenta. Ela retribui e o Fulano afasta-se. Então, Nancy vira-se para o marido:
— Quem sabe se esse rapaz, que me cumprimentou, não é teu substituto? Quem sabe se eu não lucrei também com a tua substituição?
Lívido, Chagas não fez um comentário. Durante um mês, dois, aquilo não lhe saiu da cabeça. E, sobretudo, uma lembrança o atormentava de maneira intolerável: na véspera do regresso, passara a noite fora. E, ao entrar no quarto, ao amanhecer, encontrara a mulher acordada e com a fabulosa "camisola do dia", que custara um dinheirão. Numa especulação infinita, perguntava, de si para si: "Pra que a camisola?". Ou: "Pra quem?". Ao longo desses dois meses, bebeu três ou quatro vezes, e, bêbado, debatendo-se nos braços dos amigos, soluçava: "Respondam: fui substituído?". Diante do seu desespero, a mulher comoveu-se, afinal: "Eu menti! É mentira! Foi brincadeira minha!". Ele, porém, já não estava em condições de acreditar em nada, em coisa alguma. Acabou metendo uma bala na cabeça.


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