"O Terceiro Vestido de Noiva" (Nelson Rodrigues)

O office-boy berrou:
— Mauro! Telefone!
Ele, que ocupava uma mesa dos fundos, atravessou todo o escritório, para atender. Era uma voz feminina que não se identificou. Insistiu:
— Quem fala?
E a voz:
— Você não me conhece, mas é o seguinte:
— Você sabe, por acaso, que a Nívea esteve para se casar duas vezes e que os dois noivos morreram na véspera do casamento, atropelados?
Repete a pergunta:
— Mas quem está falando?
Do outro lado, veio a resposta:
— Cuidado que você pode morrer também! E na véspera do casamento como os outros! Nívea dá azar!
Era trote, claro. Diz:
— Quer saber de uma coisa? Eu tenho mais o que fazer. Tchau.
Desligou. Veio para a mesa de trabalho pensando: — "Que conversa besta!"


Fatalidade

Não podia levar a sério um trote e, no entanto, estava impressionado. Há dez dias, começara o namoro com a Nívea, uma menina que conhecera, por acaso, num ponto de ônibus, ao lado do Ministério da Educação. O ônibus custou e daí para a paquera foi um passo. Fizeram a viagem juntos, conversando. No dia seguinte, ao chegar em casa, disse para a irmã:
— Conheci uma garota que é uma graça.
De fato, jeitosa de corpo e de rosto, Nívea era muito bonitinha. E quando Mauro soube a sua idade — 24 anos — custou a acreditar:
— Mas 24 anos? Ou você está brincando? Sabe que eu lhe daria, no máximo, 17? Sob minha palavra de honra!
Não exagerava. Nívea era uma dessas mulheres que envelheceriam ao seu lado, uma continuação do namoro. Mauro sentia que seu interesse aumentava, de 15 em 15 minutos. Falava para todo mundo: — "Parece que, desta vez, acertei." Era um bom rapaz, muito afetivo e com uma clara, taxativa vocação matrimonial. Queria ter seu lar, filhos, tranquilidade. No décimo dia de namoro, recebe o trote e quando, mais tarde, encontrou-se com Nívea, fez-lhe a pergunta:
— Escuta cá: — você já foi noiva?
E ela:
— Duas vezes.
Admirou-se: — “Ué!" Ela não entendeu a exclamação e o rapaz teve de lhe contar o trote. Nívea suspira:
— É verdade. Na véspera do casamento, eles morreram atropelados.
Balbuciou: — "Ora veja!" Na sua melancolia, ela suspira novamente:
— Já me sinto uma espécie de mulher fatal!


Complexo

No ônibus, por sorte, encontraram dois lugares juntos e puderam conversar livremente. Nívea conta, então, que ficara noiva, pela primeira vez, aos 18 anos. Um dia antes do casamento, o noivo foi esmagado por um ônibus. Noivara pela segunda vez, aos 20 anos, e a mesma coisa: segundo atropelamento. Mauro faz espanto:
— Parece piada!
Nívea deixa passar um momento e, súbito, pergunta:
— Você quer acabar?
Tomou um susto:
— Por quê? Ora essa!
— Tenho medo — te juro — que aconteça com você a mesma coisa!
Protestou:
— Ora, Nívea! Parece criança! O que houve não passa de uma coincidência. E uma terceira coincidência já seria demais, que é que há?
Nívea contou, ainda, que, em casa, no armário, guardava os dois vestidos de noiva que não usara. Pouco antes de saltarem, o rapaz pondera:
— Cuidado e vê se não pensa mais nisso, compreendeu? Assim, você acaba complexada. Eu não pretendo morrer atropelado.
Ela aperta a mão no seu braço:
— Eu vou fazer essa última tentativa. Mas se te acontecer alguma coisa, eu entro para um convento.


O pai

Quinze dias depois. Mauro, apaixonadíssimo, quer ficar noivo e pergunta:
— Por que é que você não me apresentou ainda à sua família?" Nívea vacila. Acaba tornando coragem:
— Ah, meu filho! O negócio não é tão simples e meu pai é um caso sério!
— Teu pai?
E ela:
— Meu pai tem um ciúme de mim danado. Quando eu apareço com um namorado, sabe que ele fica doente? Fica, sim. Cai até de cama. De forma que eu tenho que agir com muito jeitinho, muita paciência - e repetia: - Tenho que preparar o terreno direitinho.
Uma semana depois, Nívea o levou. Ele se viu diante de um velho esguio e triste que, segundo a filha, quase não falava em casa. Com uma voz pesada de barítono, uma polidez gelada, o pai o chamou: - "Entre, jovem. Pode entrar.” Por mais estranho que pareça, Mauro experimentou um brusco medo diante desse homem, sombrio, impenetrável. O rapaz senta-se e o velho começa:
— Jovem, veja a situação de um pai.
Andando de um lado para outro, continuou: - "Um pai cria uma filha, dá-lhe todo o amor, todo o conforto e, um dia, aparece um estranho, um desconhecido, e leva esta menina. Jovem, a vida é nojenta!" Surpreso, Mauro não soube o que dizer. Mas o velho erguia-se e, sem uma palavra, retirava-se. Mauro vira-se para Nívea:
— Teu pai é de lascar!
Ela baixa a voz: — "Não te avisei? Eu te avisei!" Passou. Seis meses depois, houve o pedido. No brinde convencional, o velho, mais esquivo e mais triste do que nunca, encara o noivo: — "Jovem, eu lhe dou a mão de minha filha, mas saiba que você está levando tudo o que eu tenho, tudo!" E fez, ali, na frente de todos, uma confissão que causou um profundo mal-estar: — "Eu tenho mulher e tenho outras filhas. Mas, para mim, só Nívea existe! Com licença!" Abandonou a sala, enquanto os presentes se entreolhavam, espantados. Pois bem: — a partir de então, Nívea foi dominada pela ideia fixa:
— Olha: — “na véspera do casamento, você não me sai de casa, não me põe o pé na rua." Mauro fazia um esforço para achar graça: — "Sossega, leoa!" No fundo, porém, deixava-se impressionar e, instintivamente, cruzava os dedos. Naquele casamento, a véspera era mais importante do que o dia. De noite, no quarto, Nívea pensava: — "Será que eu vou usar o terceiro vestido de noiva?"
Até que chegou o grande dia, isto é, a grande véspera. Mauro não ia sair de casa. À tarde, porém, o pai de Nívea foi buscá-lo:— "Jovem, vamos dar uma volta. Quero lhe falar, pela última vez, de sogro para genro." Saem. Caminhando a pé, o velho ia falando: — "Veja você: — só se fala no marido traído, no marido enganado. Mas um pai que casa a filha predileta não deixa de ser traído e a filha não deixa de estar cometendo um adultério contra o pai!" Estavam em cima do meio-fio, num cruzamento. O velho diz ainda: — Interessante! É na véspera do casamento de Nivinha que eu me sinto mais traído, compreendeu?" Naquele momento, Mauro teve a intuição de tudo. Via o rosto do sogro como uma máscara de ódio. Houve, ali, em cima do meio-fio, breve luta. Passavam os ônibus a toda velocidade e o velho quis empurrá-lo. Mauro, porém, desvencilha-se, enquanto o sogro, perdendo o equilíbrio, cai. Vinha passando um ônibus que apanha o velho, arrasta-o e esmaga-o.


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