Sem Perdão - de Nelson Rodrigues

Doutor Vidal era um pai à antiga. Considerava qualquer espécie de praia ou piscina uma pouca vergonha ignomínia. Salpicando os ouvintes com a espuma de sua justa cólera, trovejava:
— Filha minha não me põe maiô, nunca!
Sustentava a teoria, não sei se procedente, de que o maiô é mais imoral que a simples e total nudez. Criadas à sombra desses escrúpulos severos, as filhas do doutor Vidal tinham hábitos, idéias e sentimentos especialíssimos. Viviam muito presas, tão presas e controladas que só podiam ir ao cinema para assistir programas infantis de desenho animado. Note-se que uma completara vinte e dois anos, a segunda, vinte, e a terceira, dezoito. A predileta do pai era, justamente, a menor, a caçula, Maria da Graça. As outras viam, com humano desrespeito, que o doutor Vidal distinguia Maria da Graça com um tratamento especial, que negava às demais. Ele protestava: "Gosto de todas igualmente. Não faço distinção. A mesma coisa!".
Ninguém se iludia, porém. Tanto que, quando Maria da Graça começou a namorar Aurélio, ele fez vista grossa, ignorou o fato e, em suma, foi de uma tolerância sem precedentes naquela família. Com as outras, as mais velhas, era intransigente, violento como um pai de ópera. Negava-lhes o direito de um flerte, de um romance.
Pois bem. Durante 8 meses, Dr Vidal cruzou os braços diante do namoro da caçula. Só no fim desse tempo, mandou chamá-la:
 - Minha filha, teu namorado ainda não falou em casamento? Teve que admitir: “ainda não, papai”. E o velho: “Isso não está certo, não está direito”. Pausa e completa: - Bem, minha filha. Você vai dizer a esse rapaz o seguinte: ou ele toma uma decisão ou você acaba.
OS NAMORADOS
Namoravam há 8 meses. Mas como Maria da Graça vivia sobre permanente controle não pudera ter ainda, nem mesmo a modestíssima experiência de um beijo na face. Em consequência, tanto o sentimento de um, como o de outro não sofreram o mínimo desgaste. O interesse permanecia o mesmo.
No dia seguinte ao da conversa com o pai, Maria da Graça recebe o namorado no portão da casa , sob as vistas, como sempre, de uma das irmãs mais velhas. Conta-lhe a exigência paterna. E ele começa por admitir: “ teu pai tem razão, toda a razão”. Maria da Graça suspira: - Papai tem sempre razão .
O rapaz continua :
- Eu vou te explicar porque é que, até agora, não defini a situação. Sabes por quê?
E ela:
- Por quê?
Aurélio baixar voz :
- Por que se eu me casasse, e fosse traído, mataria minha mulher. Tão certo como dois e dois são quatro. - E repetia quase emocionado: - Mataria minha mulher !
A irmã de Maria da Graça, um pouco afastada, não ouviu o diálogo. Espantada, e também em voz baixa, a pequena parece desconhecê-lo: “ - Mas você é tão ciumento assim, é ?"
Respira fundo:
- Sou. Ciumentíssimo. Mas não há de ser nada nada, amanhã eu falo com teu pai. Você pode ser esposa. Não é como as outras.
OS NOIVOS
Vivendo no seio da família como uma redoma, Maria da Graça pouco ou nada sabia das paixões humanas. Assustou-se com a violência do namorado. Não podia compreender os sentimentos que levam à loucura, ao crime, ao suicídio. No dia seguinte, porém, o pai de Aurélio, que era general reformado, foi com o filho à casa de Maria da Graça fazer o pedido. Houve então, uma cerimônia sóbria. Dona Amália, mãe da garota, fez servir ao velho militar um cálice de licor. Houve um momento em que os noivos puderam conversar com mais liberdade, num canto da sala. Ainda sobre a impressão profunda, Maria da Graça perguntou:
- Responde uma coisa: Você seria capaz de matar, seria?
E ele, confirmou:
- Seria, sim. Você ou qualquer outra. Nesse particular, eu saí a meu pai.
Ela faz espanto: “Porque a seu pai?” Aurélio olha em torno, baixa voz:
- Vou te contar porque só existe para mim, um problema: ser ou não ser traído. Eu vi meu pai obrigando minha mãe a beber veneno. Todos pensam que foi suicídio, mas eu vi.
Pára, arquejante e continua: - Ela o enganava. E eu acho, até hoje, acho que meu pai fez bem, que meu pai estava no seu direito! Maria da Graça baixa a cabeça, balbuciando:
- Você me dá medo! Você me dá medo!
ESPOSA
Dois ou três dias depois, Aurélio volta ao assunto: “Eu te dou medo por quê? Você é fiel, se está disposta a ser fiel, não precisa ter medo. Não é mesmo? Medo de quê?" Então, ela faz uma confissão:
 - Sabe que eu gostei que você me tivesse dito isso? Está certo, certíssimo, o homem não deve perdoar. Nesse caso nesses casos, sou contra o perdão.
Daí a um ano, houve o casamento. Na hora de se despedir do genro, doutor Vidal Cristo segura o seu braço:
- Entrego-lhe uma moça como não existe mais. Minha filha não ia festas, não tomava banho de mar, nem de piscina, nunca vestiu o maiô. Só teve um namorado, um noivo e, agora, um marido: você. É pura da cabeça aos pés. E uma mulher assim vale um tesouro.
Emocionado, o noivo admitia: - Eu sei, eu sei.
A MORTA
Já na lua de mel, Maria da Graça falava muito da mãe do marido. Queria detalhes: “que idade tinhas naquele tempo?” Ele respondia: “13 anos”. E, então, pensando na sogra que não conhecera, ela queria saber: - “E não tiveste pena de tua mãe?”
O marido trincou os dentes: “a mulher que trai deve morrer”. Maria da Graça deixava passar alguns momentos. Aninhada nos seus braços tornava: - Era bonita ? “Sem uma palavra, ele foi apanhar, numa gaveta uma fotografia antiga. Maravilhada, Maria da Graça contempla o retrato da que morreu: “Como ela era linda!”. Um dia agarra-se ao marido: “Posso te dizer uma coisa? Não vai rir de mim?” Baixa a voz:
- Eu invejo certas mortes. A da tua mãe, por exemplo. - E suspira: - Melhor do que morrer na cama, de gripe, de pneumonia. Morte linda!
O marido teve que ralhar:
- Que palpite bobo! Isso é coisa que se diga? Tem cabimento?
A PERDOADA
Passa o tempo. Dois anos depois, o marido entra em casa e chama a mulher. Tranca a porta do escritório. Inquieta e curiosa ela pergunta: “- Mas o que há?”
O marido mete a mão no bolso, puxa o revólver e põe em cima da mesa. Numa espécie de deslumbramento, Maria da Graça olha a arma. Então, Aurélio começa:
- Nem sempre o marido é o último a saber. Eu, por exemplo, fui o primeiro.
Ela balbucia: “- Mas saber o que, criatura?”
E o marido arquejante:
- Que tu me trais. Eu sempre soube. Não fui nunca um marido enganado. Sei, também, que teu amante partiu, hoje, para Europa. Tu foste levá-lo ao aeroporto. É verdade ou mentira? Responde! É verdade?
- É verdade, tudo verdade! E agora? Vai me matar? Vai fazer comigo o que teu pai fez com tua mãe? Pausa e pergunta, em voz baixa: - Veneno ou tiro?
Diziam que investigava marido, que o provocava. Então, aquele homem a segurou pelos dois braços: “- Eu devia te matar. Tu merecias morrer. Mas não posso, porque te amo, te amo e te amo!”
E tem um soluço maior:
- Eu te perdôo! Eu te dou meu coração!
Num delírio quer beijá-la. Mas Maria da Graça desprende-se num repelão selvagem. Grita, fora de si:
- Não quero teu perdão! Tenho nojo do marido que perdoa! Nojo!
Fugiu correndo para não mais voltar, como se o perdão do marido a tivesse humilhado para sempre.

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