Medo do Hospício - Coluna do José Lino

Era de uma família de nervosos. E ela própria reconhecia: — Meu pessoal todo é assim. Tenho o pior gênio do mundo!
O pior, não. Um dos piores. Tratava o marido que só vendo.
Ele, em casa, era um inibido. A mulher, na irritação constante, que a desgastava, vivia fazendo observações azedas:
— Amadeu, não mexa aí. Não põe cinza no tapete. Amadeu! Olha a imundície que você fez no chão, criatura!
E o pobre do Amadeu, que podia reagir, valorizar a própria condição de marido, era um abnegado, um franciscano, de uma acomodação só. De vez em quando, alguém ponderava: "Fulano tem sangue de barata!" Talvez tivesse, mas ele se defendia das críticas, com o invariável argumento: "Quero é sossego!". E, de fato, o que ele queria, acima de tudo, era viver bem e pronto. A princípio, ainda discutia uma vez ou outra, mas acabou com um tão severo e eficaz controle de si mesmo, que suportava, sem um pio, os piores desacatos. E a falta de reação estimulava o gênio de Marlene. Uma vez, no emprego, teve o primeiro desabafo com uma colega de escritório:
— Minha mulher só falta me dar na cara!
A OUTRA
A colega em apreço chamava-se Marieta. Era uma morena escura que, segundo a maledicência geral, esticava os cabelos a poder de vaselina. Fora casada, separara-se do marido e se interessava, de uma maneira quase inconveniente, pelo drama conjugal do Amadeu. No fim de cinco ou seis meses de trato diário com o rapaz, ela conquistara a sua confiança, ouvia as confidências e dava o seu parecer. Suspirava:
— Você é bom demais! Ah, se fosse outro!
Sustentava a tese de que o sujeito acaba levando na cabeça, fatalmente. Citava casos de homens bons que são tratados a pontapés pelas respectivas esposas. Por vezes, fazia insinuações quase imperceptíveis, mas ele não percebia. Dizia, então: Há casos que só com pancada!" Até que, uma tarde, Marieta sugeriu uma possibilidade que jamais ocorrera a Amadeu:
— Quem sabe se tua mulher não é maluca?
Espanto do rapaz:
— Maluca?
Ela insistiu:
— Pois é, maluca. O que ela faz, é coisa de gente doida. No duro que é!
Na volta para casa, à noitinha, Amadeu vinha pensando, embora com certo desconforto, na hipótese. Mas como se caracterizava, justamente, por uma boa-fé ilimitada, acabou tendo vergonha de si mesmo. Por coincidência, a mulher estava, nessa noite, de uma irritabilidade incrível. Fez um barulho despropositado, porque, no seu razoável desmazelo, ele pusera cinza no assoalho. Esganiçava a voz:
— Você transforma sua casa num chiqueiro!
As veias do pescoço saltavam. Parecia uma possessa. E, então, embora com secreta vergonha, ele se lembrou da colega e da hipótese sugerida. No dia seguinte, em pleno trabalho, a outra voltou à carga:
— Sabe qual é a história? Consulta um médico. Vai por mim, que você vai bem! Um psiquiatra!
Não largou mais aquela idéia.
— Tua mulher sofre da cabeça! Tem um parafuso de menos! 
NOVO AMOR
Cada vez mais desconsiderado em casa, ele foi se deixando dominar pela outra. As indiretas de Marieta eram violentas. Ela acabou falando português claro:
— Queres que te diga uma coisa? Outro qualquer já teria dado um chute nessa mulher! É isso que ela merecia!
Amadeu, porém, fraco, emotivo, com horror das resoluções heróicas, recuava: "É minha esposa, que diabo! Casei-me e"... No fundo, era a favor do casamento indissolúvel. Achava uma coisa horrorosa os casais que se separam. Então, a outra, baixando a voz, usou, pela primeira vez, um argumento patético:
— Ninguém é obrigado a viver com uma louca! Ou é? Claro que não! E aposto minha cabeça: tua mulher é maluca!
O fato é que, sugestionado, acabou dizendo, em casa:
— Meu anjo, eu, se fosse você, ia a um médico.
A mulher se espanta: 
— Que médico?
Pigarreou:
— Médico de nervos, meu coração. Porque você anda tão alterada!
Pela primeira vez, aquela mulher que esbravejava tanto, que fazia a vida de todos um inferno, acusou um sintoma de medo. E, muito pálida, faz a pergunta, em voz baixa:
— Você está insinuando o quê? Que história é essa? Exaltou-se de novo:
— Eu sei o que você está pensando! Sei, sim! Mas olha! Eu não vou a médico nenhum!
PAVOR
Mas, enfim, tinha medo. Desde menina que trazia, em si, o pavor da loucura. Não podia ouvir uma história de doido que não arrepiasse. Perguntava, então, a si mesma: "Quando chegará a minha vez?". A insinuação do marido caíra em um terreno propício. Num instante, pôs-se a pensar em mil hipóteses, numa especulação infinita: "Ele quer se ver livre de mim!". Na manhã seguinte, antes de escovar os dentes, perguntou a Amadeu, com inesperada doçura, quase com humildade:
— Você seria capaz de me internar?
— Como?
E ela:
— Se eu ficasse doida, você me internaria?
Benzeu-se:
Mas o alarme de Amadeu continuou crescendo. Dia após dia, Marlene se fazia meiga, carinhosa, humilde. Desde que o marido prometera que não a internaria,em hipótese nenhuma, ela se dirigia a ele numa atitude nova, de gratidão comovida. Essa ternura, que o rapaz não desejava, tinha o poder de irritá-lo mortalmente. Foi assim que, uma noite, sob a sugestão de não sei que demônio, vira-se para a esposa. Segurava uma xícara, pequena, de café. E perguntou, de repente:
— O que é isso?
— Xícara.
— Não é xícara. É pires.
A mulher, apavorada, apanha a xícara, balbuciando:
— Isso é pires? Pires? Não é xícara?
— Claro, evidentemente! Pires, sim!
Era uma brincadeira aparente que escondia um fundo de perversidade. Amadeu viu o pavor da mulher. Durante alguns momentos, Marlene olhou a xícara pequena, com absoluta fascinação. Repetia: "É pires, não é xícara, é pires". Olhou em torno, incerta de tudo e de todos. Parecia não reconhecer mais os móveis, as paredes, o lustre, o teto. Talvez a mesa não se chamasse mesa, tivesse outro nome qualquer. Ele, continuando a comédia, fazia um espanto alegre:
— O que é que há contigo, Marlene? Não brinca assim, porque podem pensar que você é maluca!
O GOLPE
Marlene levou a xícara pequena para o quarto. Tinha vontade de fugir, de gritar, de correr. O medo da loucura estava no mais profundo de si mesma; e mais do que isso: o medo da internação. Por outro lado, passou a achar que o rosto do marido estava mais nu do que antes, sem um disfarce, sem uma máscara. Diriam a própria face do demônio. Então, Marlene teve a brusca certeza: "Vou enlouquecer e ele vai me internar". Aceitaria a loucura. Não o hospital de doidos. Depois, o medo se transformou em ódio. Alta noite, Amadeu estava dormindo. E foi assim que recebeu, na altura da carótida, um golpe só, medonho. Com a navalha de barba do marido, ela o degolara. Só assim teria a certeza de que ele não a internaria.

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