"O Macaco" - de Nelson Rodrigues

O pai esfregou as mãos, numa satisfação profunda:
— Como é, minha filha, como é? É amanhã o grande dia?
Beata suspirou, transfigurada:
— Parece, papai.
Dr. Laerte tomou, entre as suas, as mãos pequeninas da filha:
— Muito feliz?
A pequena tem um novo suspiro:
— Demais, papai. Feliz demais! — Pausa e acrescenta, já com lágrimas nos olhos:
— Nunca pensei que se pudesse ser tão feliz!
Emocionado também, o velho balbucia:
— Deus te abençoe, meu anjo. Deus te faça a mais feliz das mulheres.
Beata baixa a cabeça, num arrepio:
— Amém.
Beata tinha dezessete anos e nascera, como se diz, num berço de ouro. Pertencia a uma família esplêndida. Basta dizer o seguinte: entre os seus antepassados, havia barões, baronesas e um ministro do Império. Além dos privilégios de educação, de fortuna e nascimento, possuía uma série de dons naturais, que a tornavam uma criatura de exceção. Namorava Lisandro há dois anos. E não se podia desejar um casal mais perfeito. Pode-se dizer que, entre os dois, só existiam afinidades, seja de dinheiro, seja de posição, seja de virtudes pessoais. Pois Lisandro também era rico (ou de família rica), fisicamente bonito e moralmente bem formado. Sentia-se nele o destino do diplomata. Lisandro tinha ainda uma virtude, que não parece mas influi muito: era o primeiro, o primeiríssimo amor de Beata. Ela sublinhava: “Primeiro e último”. Vinte e quatro horas antes do casamento, o pai a interroga pela manhã. Beata diz o que já sabemos, concluindo, com involuntária tristeza:
— Papai, quem sabe se tanta felicidade não é pecado?
Há cinco dias que, nos preparativos do casamento, Beata andava numa roda-viva. Dormia alta madrugada e acordava cedinho. Já a mãe, as irmãs, as vizinhas ponderavam: “Assim você não agüenta”. A própria Beata confessava às amigas que lhe telefonavam:
— Estou dormindo em pé. Ah, que prego!
Na véspera do casamento, depois do almoço, uma amiga, Geni, passa de automóvel pela sua casa. Entra por um momento, avisando: “Visita de médico, ouviu?”.
Conversa daqui, dali e, de repente, vira-se para Beata: “Sabe onde é que eu vou agora? Imagina: ao jardim zoológico”. Beata acha graça, mas já a outra, muito animada, explica:
— Vou ver o novo gorila. Dizem que é um espetáculo. Parece homem, percebeste? Queres ir comigo? Eu te levo e, depois, te deixo aqui, de automóvel. Topas?
Beata boceja: “Tenho muito que fazer!”. Mas a mãe, que escutara o convite, anima: “Vai, minha filha, vai! Você já trabalhou demais!”. As irmãs secundaram: “É uma distração!”. Acabou aceitando. Mas, antes de sair, recomenda:
— Faz um favor. Se Lisandro telefonar, avisa que eu não demoro. Volto já!
No automóvel, Beata pergunta: “Que idéia foi essa de ver macaco?”. Geni ria, no volante:
— Dizem que esse é uma coisa tremenda. O King Kong escrito!
Meia hora depois, estão boquiabertas diante da jaula do gorila que acabara de chegar não sei de onde. Era, de fato, algo gigantesco e inenarrável. Beata imobilizou-se, como que magnetizada. Geni, crispada, balbuciou: “Que coisa!”. Todas as suas impressões eram, de uma maneira geral, frívolas, efêmeras. Desta vez, porém, parecia experimentar um sentimento de terror profundo. Quis arrastar Beata: “Vamos embora. É feio demais! Horrível!”. Beata continuava no mesmo lugar, assombrada. E, súbito, Geni tem um riso que é o disfarce histérico de sua angústia:
— Está te olhando! Gostou de ti!
Beata trinca os dentes:
— Isola!
Quando apanharam o automóvel para voltar, Beata tem um lamento: “Eu não devia ter vindo! Fiz mal!”. Geni já estava recuperada; ria-se agora da própria reação. Nada perdurava na sua alma muito leve e muito frívola. Guiando o automóvel com maestria e imprudência, brincou com a amiga:
— Ele não tirava os olhos de ti. E queres saber de uma coisa? Há macacos que se apaixonam por mulheres! E mulheres que se apaixonam por macacos.
Numa espécie de febre, Beata pediu:
— Não brinca assim, por amor de Deus!
Quando entrou em casa, a irmã caçula perguntou:
— Que tal o macaco?
Respondeu, com rancor:
— Horrendo, puxa! Olha só como eu estou arrepiada! Mostrou o braço. Na verdade, tinha febre.
De noite, antes do noivo chegar, voltou-se para o dr. Laerte: “Quer vir um instantinho aqui, papai?”. Trancou-se com o velho no gabinete. Acende um cigarro, de fumo macio, aromático. E fez a pergunta súbita: “Papai, eu conto com o senhor, papai, não conto?”. Admirou-se:
— Claro!
Pousou o cigarro no cinzeiro. Ergue o rosto e fecha os olhos e anuncia, sóbria:
“Papai, eu não quero mais casar!”. O velho estava sentado. Levantou-se em câmera lenta. Atônito, repetia: “Não quer casar?”.
E ela: “Não, papai, não quero casar!”. Dr. Laerte põe as mãos na cabeça:
— Mas que piada é essa? Não quer casar por quê? Deve haver um motivo. Qual?
Vacila:
— Bem, papai. Não há motivo, ouviu? Simplesmente, não quero e pronto.
O velho tratou de dominar a situação. A perspectiva do escândalo aterrou-o. Faz a filha sentar-se; submeteu-a a um interrogatório: “Minha filha, ninguém toma decisão dessa natureza sem uma razão muito forte...”. Durante uns quarenta minutos ela resistiu à pressão paterna. Por fim, exausta, admite:
— Eu gosto de outro, compreendeu? Gosto de outro. Esse é o motivo!
Dr. Laerte sofria do coração. Experimentou um tal abalo com a atitude da filha que calculou: “É agora que eu vou ter um colapso”. Todavia, como punha aquela menina acima de tudo e de todos, fez das tripas coração e disse: “Você é quem sabe se deve ou não deve casar. Não quer? Muito bem. Não casa, pronto. E pode contar comigo”. Foi um pânico, no resto da família, quando se soube que Beata não queria casar. A mãe ficou logo com palpitações, falta de ar. Uma solteirona, tia da menina, a interpelou: “Você endoideceu?”. Dr. Laerte teve que ralhar, zangado:
— Vê se não dá palpites, carambolas! E trata de distribuir os doces com a vizinhança.
Quem ficou alucinado foi o noivo. Perguntou ao ex-quase futuro sogro: “O senhor acha isso direito?”. O velho perdeu a paciência:
— Acho, sim. Perfeitamente. Acho. A única coisa que eu acho direito é a felicidade de minha filha.
Como o rapaz insistisse, cassou-lhe a palavra: “Passe bem”.
Numa incompreensão obtusa e dolorosa, as pessoas daquela família se entreolhavam apavoradas. O pai, amargurado, mas sereno, fechou-se novamente com a filha: “Você diz que gosta de outro. Mas quem é o rapaz, minha filha? Ele gosta de ti?”.
Beata teve uma explosão:
— É inútil, papai. Eu não direi. Basta que o senhor saiba o seguinte: eu não poderia me casar com ele, nunca! Nunca!
Até alta noite, dr. Laerte tratou de arrancar da filha a identidade do outro: “Ele tem um nome. Ao menos, o nome. Diz o nome!”. Encarou o pai, numa espécie de desafio: “Nunca!”. Dr. Laerte deixa Beata e vai dizer à esposa: “Deve ser um homem casado”.
No dia seguinte, ou seja, o dia que devia ser do casamento, Beata caiu de cama. E, desde o primeiro momento, disse aos pais, às irmãs, com tranqüila e apavorada certeza:
“Eu vou morrer”. Estiolou-se dia a dia, hora a hora, sem que médico nenhum pudesse explicar ou, sequer, dar um nome ao mal súbito e misterioso que a matava. Em vão perguntavam: “Quem é este homem?”. Ela trancava os lábios e não dizia. Só uma vez, atormentada de febre, balbuciou uma resposta delirante, que ninguém entendeu: “Não é um homem...”. Morreu dois meses depois. As pessoas que a vestiam para o caixão encontraram, entre os seios da morta, o retrato de um gorila monstruoso recortado de um jornal. Ninguém deu a menor importância à fotografia.



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