Anemia Perniciosa - de Nelson Rodrigues

Apanhou o envelope que acabava de chegar e, bocejando, fez a si mesmo a pergunta: “De quem será?” Antes de começar a ler, procurou, com os olhos, a assinatura. E teve, então, a surpresa: era uma carta anônima, a primeira que recebia em seus 36 anos de vida. Com uma sensação de mal-estar, quase de medo, leu a primeira frase: “Você é um idiota muito grande.” Continuou: “Sua mulher passa você pra trás, direitinho.” O remetente desconhecido continuava nesse tom e terminava com o conselho prático: “Deixa de ser burro e abre o olho.” Sem querer, não conteve o comentário:
— Cachorro!
Leu e releu aquilo, dominado por uma raiva cega e impotente. Logo, porém, se convenceu de que era inútil um rancor sem destinatário. E, então, andando de um lado para outro, pensou na mulher, tão linda e tão nova, com seus modos sóbrios e bonitos. A verdade é que, casado há dois anos e alguns meses, punha a mão no fogo pela esposa. Chamava-se Maria de Lourdes e não se podia exigir mais de uma criatura. Sempre com a mesma cara, terna e alegre, incapaz de irritações, de grosserias. Leu ainda uma vez a carta anônima e, depois, começou a sua minuciosa destruição. Rasgou o papel infame em mil pedacinhos. E só então respirou, mais ou menos compensado. Nessa noite, quando chegou em casa, foi mais amoroso do que nunca. Entrou e, sem uma palavra, agarrou a mulher e a beijou com uma ferocidade de lua de mel. Parecia que, nessa efusão tremenda, queria livrá-la da ofensa que ela ignorava. declarou:
— Tu és a mais pura das esposas!
O amigo
No dia seguinte, porém, fez o que não devia. A caminho do ônibus, passou pela casa de um vizinho e amigo, o Godofredo. E teve a inspiração súbita: parar e chamar o Godofredo, para irem juntos. E, então, um pouco constrangido, Alcides fez a pergunta: “Que ideia faz você das cartas anônimas?” Godofredo parou, em plena calçada. Era um cidadão que tinha teorias, as mais extravagantes, a respeito de tudo. E, começou: 
— Respeito profundamente as cartas anônimas. São as únicas que dizem a verdade!
Alcides gaguejou, atônito: “Como?” O outro, inflamado, continuou: — Claro! O fato de não ser assinada é uma garantia de veracidade. O anônimo não mente!
— Você acha?!...
E o outro categórico: “Lógico!” Nessa altura dos acontecimentos, Alcides começou a transpirar. Quase no fim da viagem tomou coragem e fez mais uma consulta ao outro: “Dá um palpite. Eu tenho um amigo assim, assim...” Godofredo se antecipou:
— E teu amigo recebeu uma carta anônima? Exato. Uma carta dizendo que a mulher dele o traía, etc., etc. Mas eu conheço o casal: é uma senhora honestíssima! 
Godofredo teve um risinho: “Meu caro, a mulher é honesta até o momento em que... Compreendeste?” Alcides já não sabia o que dizer. A lógica do outro o intimidava e emudecia. Antes de se despedirem, Godofredo sugeriu:
— Diz a teu amigo o seguinte: para simular uma viagem. Isso é um velho golpe que ainda produz seus resultados.
— E depois?
— O resto é claro como água: às 11 horas da noite, quando a vizinhança estiver dormindo, o cara há de aparecer... E teu amigo, se estiver nas redondezas, poderá cavar um flagrante em grande estilo!
Dúvida
Diante da sugestão, só no escritório é que, mais lúcido, pôde raciocinar. Mas pensou: “Se eu fizesse isso, seria um patife, um canalha!” A simples perspectiva de duvidar de Maria de Lourdes parecia-lhe uma indignidade. De noite, porém, ao entrar em casa, dizia:
— Imagina você o abacaxi. — Ela fez, cordialmente, a pergunta: “Qual?” Alcides, na vergonha antecipada da mentira, anunciou:
— Amanhã tenho de ir a Barra Mansa e passar lá três dias.
— E eu?
Beijou-a na face e suspirou: “Você fica. O chefe vai comigo e...” Maria de Lourdes deu um muxoxo: “Que coisa aborrecida!” Ele, porém, julgou perceber, no tom, nos olhos, em toda a atitude da esposa, algo de suspeito. Nessa noite, não dormiu direito. Virava e revirava na cama, repetindo para si mesmo: “Eu sou um cretino!”
Pela manhã, a mulher quis levá-lo ao aeroporto. Improvisou uma desculpa e a dissuadiu. Veio o táxi e, com a mala pequena, de mão, partiu. Antes beijara a mulher na boca. Maria de Lourdes insistiu, até o fim:
— Não deixa de me telefonar — e repetiu, sobretudo, a recomendação: — Juízo!
Durante todo o dia, ele pensou: “A mulher infiel não tem ciúmes. E ela pediu ‘juízo!’” Andou pela cidade, sem destino, numa melancolia pavorosa. Às dez horas da noite, enfim, um vulto se colocava, debaixo de um árvore, a espreita: era ele mesmo que, de gola levantada, vigiava o próprio lar. De vez em quando, olhava o relógio. Dez e dez, dez e vinte, dez e meia. Nada, absolutamente nada. O aspecto de sua casa era o mais honesto. Às dez para as 11, ele, arrepiou-se de remorso. Para maior vergonha, estava armado. E o peso do revólver, no bolso traseiro da calça, era uma humilhação. Às 11 horas, em ponto, decidiu-se: ia invadir a própria casa e atirar-se aos pés da mulher. De joelhos, confessaria tudo. Abraçado às suas pernas, pediria perdão...
Deu um passo e parou. Alguém vinha, no princípio da rua: era um vulto masculino qualquer. Enquanto o outro se aproximava, Alcides fazia seus cálculos:
“Deve ser o namorado de alguma empregada ou...” Ele quase não respirava e, sem querer, sem sentir, abriu o colarinho, afrouxou a gravata. Pôde, enfim, identificar o transeunte: seu amigo Gouvea que, por coincidência, Maria de Lourdes achava de uma antipatia única. Abafou uma exclamação, quando viu o Gouvea abrir o pequeno portão de sua casa e entrar, com a decisão e a agilidade de quem não pode ser visto. A porta da frente estava apenas encostada: tanto que o miserável a empurrou e desapareceu lá dentro. Durante uns cinco segundos, foi tal o horror de Alcides que quase se sentou no meio-fio. Tinha as pernas bambas e a vista turva. Gemia: — Miseráveis!
Vingança
Durante quarenta minutos, pensou nos meios e modos de vingança possíveis e imagináveis. Pouco a pouco, adquiriu uma raiva fria, lúcida, como jamais conhecera. A casa continuava em trevas e, súbito, iluminou-se a janela do quarto. O pecado, com luz elétrica, enfureceu-o como uma ostentação de impudor. Então, sem rumor, atravessou a rua. Empurrou o portão e entrou. Escondeu-se junto com a seguinte convicção: “Ele tem que passar por aqui...” Esperou uma hora, duas horas. De repente, chegou aos seus ouvidos o riso da mulher, livre, límpido, incontrolável. Doeu-lhe, ainda mais, que ela risse pecando. Mais uma hora e, súbito, sente que a porta se entreabre. Os dois se despediam e... então, rápido, com o revólver na mão, a maneira de um gângster experiente, empurrou com o pé a porta e entrou. Naquele momento foi o único sereno. Bateu no interruptor e iluminou a saleta. Os culpados, apavorados, estavam diante dele. Maria de Lourdes no seu pijama cinzento-claro, leve e transparente. E Gouvea, pálido, tremia, numa covardia desprezível. Alcides parecia cordial, alegre:
— Bonito! Muito bonito!
Maria de Lourdes, sem desfitar o revólver, murmurou: “Não me mate!” Foi preciso que Alcides dissesse, rindo: “Matar por quê? Ninguém vai morrer, minha filha...” Virou-se para Gouvea, que tinha na face, na boca, um jeito de choro, fez a pergunta: “Já pagou?” O outro não entendeu. Ele insistiu: “Pague à minha mulher.”
E acrescentou: “— Minha mulher não faz fiado. Pague, anda.” O pobre-diabo olhou para Maria de Lourdes e para Alcides. Perguntou, quase sem voz.
— Quanto?
Veio a resposta:
— Cinquenta reais.
Ainda quis resistir: “Mas eu não posso...” Alcides encostou-lhe o revólver no peito: “Ou paga ou morre!” Meteu a mão no bolso, apanhou a carteira, e tirou uma cédula de cinquenta reais. O marido comandava: “Entrega à minha mulher. Agora pode ir e passar bem.” Gouvea, sem uma palavra, passou por eles, de cabeça baixa, e correu, pela rua, dentro da noite.
O martírio
Então, começou para o casal uma vida nova. Não tocaram mais no assunto. Ele, porém, apanhou aquela cédula de cinquenta reais e a espetou, com o punhal, na parede da sala de jantar, bem no centro. Era notável de se ver. Aquela nota, traspassada, tinha qualquer coisa de lírico como uma imagem de borboleta. Parentes e amigos viam aquilo e não compreendiam. Todos os dias o casal tomava café, almoçava e jantava sob a obsessão da cédula. Mas enquanto o marido comia muito bem, a mulher não comia nada. Vendo os cinquenta reais — apunhalados como um coração — seu estômago se contraía numa náusea mortal. Acabou apanhando uma grave anemia. Em nenhum momento, a cédula atravessada deixou de estar presente. Só desapareceu quando a moça, devorada pela anemia, faleceu, afinal. O marido foi lá, arrancou o punhal e embolsou a cédula. Alta madrugada, durante o velório escondeu, entre os cravos e as dálias do caixão, os cinquenta reais. Assim foi enterrada Maria de Lourdes.

Comentários

Postagens mais visitadas