Morrer como um cão (Nelson Rodrigues)

A rigor, só teve duas namoradas na vida. A primeira foi Helena, uma morena cheia de corpo, vistosíssíma, que chamava a atenção no meio da rua. E era tão bonita que os homens não respeitavam a presença do Armando. Onde quer que os dois aparecessem era um martírio. Assoviavam de todos os lados. Armando ficava branco. E Helena fazia, entredentes, o comentário:
— Mas que moleques sem educação! O rapaz a cutucava:
— Não olha! Não dá confiança!
No fundo, Helena gostava de fazer sucesso, de inspirar assovios. Confidenciava para as amigas: — “Não sei o que é que eu tenho. O fato é que os homens ficam malucos!”. Morreria de tédio, de pena, de nostalgia, no dia em que lhe faltasse admiração masculina. E quem sofria com isso era o pobre Armando. Tinha, na ocasião, seus dezoito anos. Mas era pequeno, fraquinho e, além disso, asmático. Com seu tórax de enfermo, de candidato à tuberculose, não se atrevia a uma atitude contra os fulanos que mexiam com a pequena no meio da rua. Mas a humilhação doía na sua carne e na sua alma. E quando, por fim, Helena o trocou por outro, ele teve um consolo: — já não seria desfeiteado por causa dela.
A segunda namorada foi Lurdinha, que levava sobre a precedente uma vantagem considerável: — era uma garota de graciosidade discreta, quase imperceptível. Era preciso olhar muito para ela, prestar bastante atenção, para descobrir o seu encanto secreto. Já Armando podia sair com a namorada, sem perigo de incidentes desagradáveis.
O casamento
Foi um namoro rápido. Em coisa de quinze dias, Armando levou a garota para apresentar à família. Sua mãe, d. Flor, olhou Lurdinha de alto a baixo, serviu-lhe cafezinho com biscoitos e, em suma, tratou-a com uma cordialidade controlada, mas satisfatória. Mais tarde, Armando perguntava:
— Que tal, mamãe?
A velha, que estava com uma costura no colo, suspirou:
— Serve.
Ele ficou com cara de tacho e meio chocado:
— A senhora não gostou?
— Mais ou menos. — E acabou acrescentando: — “Não fede, nem cheira”.
A grosseria da expressão doeu no rapaz. Teve um desabafo:
— A senhora é um espírito de porco, hein, minha mãe?
Já o irmão de Armando, o Nonô, foi, se bem que sintético, mais positivo:
— Bonitinha.
Ora, o moço levava a opinião de Nonô na maior conta. Embora existisse de um para o outro uma diferença de vários anos, o fato é que se queriam como gêmeos e se consultavam para tudo. Sempre que Armando arranjava uma garota, já sabe: pedia a opinião, o conselho, o estímulo do irmão. E vice-versa. Enfim, combinavam de uma maneira impressionante e eram os melhores amigos do mundo. Depois dessa primeira visita, Armando quis saber da garota:
— Que tal meu irmão?
— Simpático.
Ele protestou, quase ofendido:
— Simpático, só? Um sujeito bonito, alinhado, parece artista de cinema!
Lurdinha, espantada com a veemência, ainda brincou:
— Eu não quis ofender. Teu irmão é um gato, pronto!
Seis meses depois, estavam casados. Por exigência de Armando, Nonô, sempre que se encontrava com a cunhada, a beijava na face.
Armando impunha:
— Faço questão que vocês sejam amicíssimos!
Homem bonito
E, de fato, o que tinha Armando de sem graça, como homem, tinha o outro de bonitão. As pequenas viviam assim em cima dele. Umas perguntavam: “Por que você não entra para o teatro? Para o cinema?”. Ele ria e fazia o comentário impatriótico:
— Não acredito em cinema brasileiro.
Quanto a casamento, não queria nem ouvir falar. Batia na madeira: “Isola!”. E, se insistissem, argumentava: “Prefiro a mulher dos outros!”. Mas era mentira. Fugia das mulheres casadas. E, sério, quase triste, dava em definitivo sua opinião:
— Não tiro a mulher de ninguém! Deus me livre!
Depois do casamento do irmão, sossegara. Achavam graça: “Que negócio é este? Seu irmão casou e quem ficou sério foi você?”. Fazia piada: “Sempre fui sério!”.
Jantava todos os dias na casa da cunhada. Conversavam muito, ele e ela coincidiam nos gostos e opiniões. Armando esfregava as mãos, radiante: “Meu irmão e minha mulher são unha e carne!”. Essa amizade o enternecia. Ficava horas ouvindo a conversa dos dois; e, por vezes, cochilava, enquanto os dois palestravam. Às vezes era o próprio Armando quem telefonava do escritório:
— Olha! Hoje eu tenho serão, ouviste? Vai lá pra casa fazer companhia à minha mulher.
Lá ia o Nonô. O outro chegava à meia-noite ou mais; encontrava os dois ouvindo música. E foi numa dessas noites de serão que, mudando um disco, Lurdinha teve a curiosidade súbita:
— Você nunca deu em cima de mulher casada?
— Nunca.
E ela, colocando o disco, de costas para ele:
— No duro?
— Pode acreditar!
Começaram a ouvir a música, que era um bolero, e, então,embalado pelo disco, Nonô ergueu-se, enfiou as duas mãos nos bolsos, foi até a janela; e, voltando, perguntou:
— Sabe qual é a única mulher casada que até agora me impressionou?
Estavam os dois face a face. Ela antecipou-se: “Não precisa dizer, eu sei”. Ficaram em silêncio algum tempo. Quando chegou a vez de mudar o disco, Lurdinha ergueu-se; de costas para ele e disse: — “Você não tira os olhos de mim”. — E fez a pergunta: “Não tem medo que os outros desconfiem?”. Aquela conversa foi, para eles, um tormento delicioso. Nonô pensava: — “É um crime o que eu estou fazendo”.
Destino
Quando o inevitável aconteceu, ambos tiveram a mesma explicação: “Foi o destino”. Que remorso havia no fundo daquela felicidade! De vez em quando, Nonô a beijava com uma espécie de ódio:
— “Você não tem cara disso!”. Ela achava graça: “Disso o quê?”. Nonô ia especificar: — “Cara de adúltera” — mas o pavor à palavra o emudeceu. Suspirou: — “Nada”. E a naturalidade com que ela ia aos encontros, com que se atirava nos seus braços, o aterrava. Tinha a exclamação:
— Mulher é um caso sério. Mas olha! Armando não pode saber nunca!
Foi por essa época que Armando, que queria um aumento de salário, deu para levar o patrão, o dr. Gustavo. Era um senhor, já de idade, que padecia de dois males: a esposa, que lhe amargurava a existência, e uma azia, que era o inferno de suas refeições. Armando telefonava para a mulher: “Vou levar o chefe. Faz uma comida gostosa!”. Outra recomendação era a seguinte: “Trate o homem bem, que eu vou entrar com o pedido de aumento”. O homem apareceu uma vez, duas, três, quatro. Por fim, estava lá todas as noites. Praticamente, o dr. Gustavo separara-se da mulher. No segundo ou terceiro jantar em casa de Armando, teve um desabafo irreprimível e gemeu:
— Pois eu, minha senhora, não tenho lar! É a dura realidade! Lurdinha foi de uma habilidade exemplar; com muita doçura e feminilidade, aproveitou o ensejo:
— Então, por que é que o senhor não vem jantar todos os dias aqui? Ela fazia, para o patrão do marido, pratos especiais, que não tivessem muita gordura, nem temperos fortes. Vinha lá de dentro, trazendo um prato fundo: — “Essa canjinha o senhor pode comer”. Tantas atenções o envolviam e deslumbravam. No escritório, chamava o Armando: — “Seu Armando, você tem uma mulher que é um anjo!”. No fim de quinze dias, deu-lhe um aumento. Prometeu-lhe outro para o fim do ano.
O ciumento
Patrão e empregado eram agora íntimos. Dr. Gustavo fazia confidências ao Armando: — “Eu tenho um defeito, sou ciumento, tenho ciúmes de tudo!”. Rilhava os dentes ao dizer isso; e foi mais além: — “Te juro que, por ciúmes, sou capaz de dar tiro!”. Impressionado, o Armando ia para casa contar para a mulher: “O patrão não é sopa!”. Quem não gostava era o Nonô. Queixava-se amargo e ressentido à garota: — “Esse patrão do teu marido é uma boa besta”. E, um dia, o Armando encontra, na sua mesa do escritório, um envelope. Abre e toma um choque: era uma carta anônima. Leu e releu; e guardou aquilo. Mas as palavras estavam guardadas no seu cérebro: — “Você é um idiota muito grande. Sua mulher tem dois. O Nonô e o Gustavo”. Dois dias depois nova carta: “Abre o olho, seu cretino!”. Vieram ainda uma terceira e quarta cartas, com endereço e horário dos encontros de Lurdinha com Nonô e o patrão. Ele, branco e com o coração disparado, rasgava aqueles papeluchos infames em mil pedacinhos.
Um dia, foi espiar, de dentro de um táxi e pelo vidro, o encontro de Nonô e, no dia seguinte, viu o patrão e a esposa entrando no mesmo edifício. Ele não disse nada, nem soube o que fazer. Passou uns quinze dias com o problema na cabeça. Quando observavam sua tristeza indisfarçada, desculpava-se: “Estou indisposto”. Um dia, porém, saiu animado para o escritório e entrou no gabinete do patrão. Foi direto ao assunto: — “Doutor Gustavo, eu acho que minha mulher me engana”.
O outro pulou da cadeira: — “Mas como?”. E ele: — “Tenho provas, doutor Gustavo”. Baixou a voz e concluiu: — “Com o meu próprio irmão”. O patrão estava roxo; fez a pergunta: — “Tem certeza?”. E Armando: — “Absoluta!”. Deu detalhes, forneceu hora e endereços. E, por fim, saturado de tanta infâmia, arriou numa cadeira e soluçou como um menino. Em meio do pranto, teve um repelão feroz e inofensivo: “Eu se fosse homem, se tivesse vergonha na cara, matava esse cachorro”. O dr. Gustavo não esboçou um gesto, não disse uma palavra.
Nessa noite, antes de dormir, Armando fez um comentário enigmático para a mulher: — “Eu acho que um sujeito que tira a mulher dos outros devia morrer como um cão!”.
No dia seguinte, quando Nonô vai entrando no edifício com Lurdinha pelo braço, ouve um “psiu”. Vira-se instintivamente e vê, então, a poucos metros, o dr. Gustavo. Este empunha um revólver e atira uma vez, duas, três, quatro vezes. Nonô tentou correr, escapar, mas, atingido mortalmente, foi cair adiante. Teve breve agonia, e morreu ali mesmo, com o rosto virado para o alto do edifício.

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