A Fraldinha Ameaçadora (Coluna do José Lino)

Bateu o telefone para a casa da menina:
— Por obséquio. Alicinha está? Veio a resposta sucinta, inapelável.
— Viajou.
Disfarçou a angústia: “Sabe quando volta?”. E a pessoa:
— Não sei informar.
Desligando o telefone, ele não teve dúvida: aquilo não era viagem, não era nada, era fuga, fuga desesperada, talvez definitiva. E, então, apertando a cabeça entre as mãos, ele chorou alto, chorou forte. Com mais de quarenta anos, casado, pai de filhos, apaixonara-se por uma menina de dezoito anos. E esse amor de grisalho por uma adolescente foi, para ele, um contínuo dilaceramento.
Médico, largou a clínica. Despachava os clientes, com a seguinte franqueza: “Não sei receitar nem Melhoral”. E o pior de tudo, o patético, é que a menina retribuiu, com a violência de um primeiro
amor. Houve alguns beijos, e a pequena, que vinha de um colégio interno, suspirava fechando os olhos:
— Eu não sabia que beijo era tão bom.
HISTÓRIA DE AMOR
Quando começara aquilo? Um mês atrás, Alicinha aparecera no seu consultório com Eleonor, uma cordialíssima solteirona que era uma antiga cliente de Geraldo. Bastou um primeiro olhar e pronto. Pensou, com o coração batendo mais forte: “Vou me apaixonar por essa garota”. A sala de espera estava apinhada de clientes, mas Geraldo tratou de reter Alicinha, de envolvê-la como se esse primeiro encontro fosse também o último. O caso clínico da garota era o mais banal, e, por assim dizer, inexistente. Mas Alicinha só saiu de lá duas horas depois. Transpirando de dor de cabeça, chamou a enfermeira: “Não atendo mais ninguém”. Sentou-se na cadeira giratória, apertou a cabeça entre as mãos e refletia: “Estou apaixonado”.
No dia seguinte, em pleno expediente do consultório, recebe um trote. Seu coração dispara, quando reconhece a voz: era Alicinha. Passa quarenta e cinco minutos no telefone. Depois, ao atender um doente grave, bufa:
— Eu estou mais doente do que você!
DOENÇA
Durante quinze dias puderam esconder seu desesperado amor. Encontravam-se e passeavam nas horas menos suspeitas, quase sempre pela manhã. Ele, sôfrego, teorizava: “Uma mulher pode fazer o diabo às dez horas da manhã. Ninguém desconfia que se possa pecar tão cedo!”. Ria da própria piada. Pelo espaço de duas semanas, viveu para essa paixão e, súbito, a família da garota descobre tudo.
Alicinha tinha um desses pais à antiga e a primeira medida do velho: encerrar a menina no quarto. E Geraldo quase enlouquece. Telefonava cinqüenta
vezes por dia, com uma obstinação de possesso. A princípio diziam: “Saiu”, ou “Não pode atender”. Por fim, o próprio pai de Alicinha, com uma dignidade irresistível, ameaçou-o: “Dou-lhe um tiro!”. Como um miserável, Geraldo ia rondar a casa da garota alta madrugada. Reconhecia, de si para si: “Sem essa menina, eu não vivo!”. Resiste, sem telefonar, uns dez dias. No décimo primeiro, entra num café, liga para a casa de Alicinha e sabe que ela “viajou”.
Sofreu tanto que chegou a pensar no suicídio. Súbito, ocorre-lhe um nome: Eleonor, a solteirona, que era sua amiga e de Alicinha. Foi bater na porta de Eleonor. No começo, a outra resistiu. Mas acabou cedendo ante suas lágrimas de homem. Disse:
— Embarcou para o Canadá ontem.
Ele apanha a mão da solteirona e cobre de beijos, numa gratidão de louco.
CANADÁ
A garota viajara sozinha; ia residir no Canadá com uma família conhecida. Aconteceu, então, o seguinte: Geraldo passou o consultório adiante; vendeu o automóvel; e, uma semana depois, partia. Eleonor foi levá-lo ao aeroporto. E, lá, antes de entrar na fila de passageiros, Geraldo baixa a voz:
— Por essa garota vou ao crime! Ao crime!
Eleonor não fez nenhum comentário. Doeu-lhe, porém, não ter inspirado, nunca, uma paixão assim.
RETORNO
Geraldo abandonara esposa, filhos, profissão. Para a mulher, foi o mais lacônico possível: “Não sei quando volto, nem se volto”. Ela, que era uma senhora de brio, ergueu o rosto, impassível: “Perfeitamente”. E ninguém soube, a não ser Eleonor, que ele estava no Canadá, enlouquecido de amor.
Três meses depois, a solteirona dá com Geraldo no meio da rua. Aproxima-se, espantadíssima:
— Voltou?
E ele, remoçado, com uma alegria sã no olhar e no sorriso, explicou que chegara há um mês e que recomeçara a clínica. Atônita, a solteirona indaga: “E aquele caso?”. Riu de novo, recuperado:
— Aquilo acabou.
Em pé, na calçada, a solteirona não soube o que dizer, o que pensar. Despediu-se do médico e, subitamente, a criatura humana parecia-lhe vil. Durante algum tempo, ainda pensou no caso. E já o esquecia, quando de repente batem na porta. Vai abrir e recua, num assombro ainda maior: era Alicinha. Antes de entrar, antes mesmo de um cumprimento, a pequena soluça:
— Vou ter neném, meu Deus!
FUGITIVA
Muda, taciturna, a solteirona ouviu toda a história. Geraldo surpreendera Alicinha em pleno Canadá. Tudo que parecia tão difícil no Brasil tornou-se
monstruosamente fácil no estrangeiro. Ela ainda perguntou, por entre lágrimas: “Tu não me abandonarás nunca?”. Geraldo prometeu, num desvario: “Nunca!”. Mas a primeira tarde que passaram juntos foi também a derradeira. Eleonor perguntou:
— Por quê?
E Alicinha, assoando-se no lencinho: “Não sei. Ele não quis mais”. E, de fato, Geraldo se desinteressava, num tédio súbito, irresistível e mortal. Dois dias depois, sem uma palavra, um bilhete, um recado, embarcava para o Brasil.
Um mês e meio depois, Alicinha vai ao médico. Soube que ia ser mãe. Enquanto pôde esconder seu estado, muito bem. Mas chegou um momento em que a coisa se tornou evidente. Fora de si, fugira para o Brasil. Agarrou-se à solteirona:
— Ninguém sabe que eu voltei. Se papai descobrir, me mata! Eleonor pousou a mão na sua cabeça:
— Ninguém saberá. E vamos fazer o seguinte: você fica aqui, e quando o menino nascer eu tomo conta.
O MENINO
Assim se fez. E é justo que se diga: Eleonor foi incomparável. Durante vários meses, desvelou-se ao lado da amiga mais moça. Por vezes, Alicinha perdia a cabeça, sem compreender o abandono de Geraldo: “Por quê?”. E ela própria respondia: “Com certeza me achou sem graça, inexperiente, muito criança!”. Chorava tanto que, um dia, a solteirona perdeu a paciência; foi, até, grosseira:
— Ora, não amola! Você teve muita sorte! Eu, nunca — ouviu? —, nunca tive ninguém que gostasse de mim. Nem solteiro, nem casado, nem viúvo — ninguém! — Pausa e continua, ofegante: — Tenho inveja de ti. E te digo mais: eu daria tudo para ter um filho, para ser mãe!
Passou. Até que, um mês após, nasce a criança. A solteirona debruçou-se para ver o garoto, como se ele fosse um menino-deus. Dizia, com um olhar de fanática: “Que vontade de apertar, de morder, meu Deus!”. Quanto a Alicinha, espiava só, assustada
com esse filho ilegítimo e lindo, que varava as noites, chorando, com dor de barriga. Mas, enfim, agora que tinha o corpo antigo, a cintura de menina solteira, Alicinha suspirou:
— Já posso aparecer à minha família. Você vai ficando com a criança e eu passo aqui, de vez em quando.
SOLTEIRONA
A volta da garota, que a família julgava morta e enterrada, foi um episódio de folhetim barato. O próprio pai esqueceu-se dos seus escrúpulos severos: soluçava como uma criança. Esse carinho universal deu coragem a Alicinha. Uma semana depois, num rompante, contou que dera à luz um menino. O velho foi magnífico. Com uma voz cheia, de barítono, anuncia: “Pode ser filho natural, pode ser o raio que o parta. Mas é meu neto e está acabado”. Delirante, Alicinha liga para a solteirona.
Pede: “Apanha um táxi e traz meu filho. Já, sim?”. Então, Eleonor pôs-se gritar:
— Teu filho, como? É meu! Só meu!
Mãe, pai, irmãs de Alicinha desfilaram pelo telefone, fazendo apelos desesperados. Eleonor berrava: “Ninguém põe a mão na criança!”. Justamente, estava mudando a fraldinha do bebê quando tocava o telefone. Fez a ameaça: “Se vocês quiserem tomar o guri, sabem o que eu faço? Estrangulo meu filho na própria fraldinha. E, assim, nem meu, nem de ninguém!”. Terminou perguntando: “O filho é meu ou teu?”. Alicinha, alucinada, vira-se para a família: “Respondo o quê?”. O velho avô apanha telefone:
— O filho é teu! — Soluça: — Deus o abençoe!
Eleonor desliga o telefone. Encosta a fralda úmida, apanha outra, limpa.
Aquela solteirona era, na face da Terra, a mais feliz de todas as mães.

Comentários

Postagens mais visitadas